quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O dia seguinte ao de ontem foi ambíguo. Sentia-me tranquilo por saber que o resgate conseguiu chegar até Ana. Todavia não conseguia tirar da minha cabeça o som dos disparos, a sensação de descontrole e os olhares dela. Mesmo em meio àquela situação toda, Ana não fora capaz de se assustar ou de me temer. Apenas olhava fundo, como se analisasse um de seus casos psiquiátricos. Em plena crise nervosa, não recebi seu abraço, tampouco seu carinho, apenas aqueles olhos penetrantes de quem se importa sem se envolver, clínicos. Quando tirei a arma do bolso, ela nem mesmo se afastou de mim, não mudou um milímetro de sua análise psicanalítica, como quem narrava o que acontecia a um gravador, daqueles que os filmes mostram, usados pelos detetives de polícia. Por que ela era assim? Seria uma capa de proteção dos amores mundanos? Ou ela simplesmente tinha aprendido a ser assim, calma, após anos de trabalho com "assassinos de uniforme", no departamento de psiquiatria da polícia? Ontem, na hora dos disparos, comemorava-mos três anos juntos. E não sentia nenhuma vibração dela, como que se aquele dia fosse um outro qualquer, uma data no calendário e nada mais. Parecia não se importar com a minha presença ou ausência ali. Um fantasma, uma aparição fantástica sem platéia, era como me sentia em nossos encontros. Quando saquei o revólver, meu revólver de trabalho, queria sentir, de alguma maneira, sua reação, seu susto, seu medo, seus sentimentos mais primitivos. Mas ela nem piscou em sinal de dúvida ou estranhamento, apenas permaneceu de olhos fixos em mim, desvendando-me os mistérios cerebrais. Até que sentiu dois disparos, cambaleou o corpo pálido sobre a poltrona, não conseguiu mais penetrar-me as janelas da alma, e fui embora. 

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