domingo, 10 de abril de 2011

Um dia me disseram que ser escritor é mesmo fingir as ficções que se quer viver, ou ampliar as sensações daquilo que se viveu, ou ainda simplesmente interpretar os sentimentos que se poderia viver se a verdade das mentiras se efetivasse no tecido do real.

Não sei definir o ofício, que nem é meu, na verdade. Sei, simplesmente sei, que a dor é maior do que se pode suportar, quando se escreve, quando se vive "pela metade". É muito mais do que a duplicidade da vida, é a sua multiplicidade, fragmentada em cacos no infinito.

Nesta noite, tive a pior impressão do que se pode sentir quando se escreve sobre o que poderia ser a vida, se ela fosse alargada segundo suas emoções mais íntimas. Eu poderia dizer que a dor literária, por ser, ao mesmo tempo, tão próxima e tão distante da realidade vivida, é ainda maior do que as dores que sentimos em nosso dia a dia, caótico e inexato. (Des)fraturar a vida, impondo-lhe sua própria ordem, tem os seus custos, elevadíssimos.

Muito mais do que dores nas costas, reais e palpáveis; assaz além das enxaquecas cotidianas; em alto grau maior do que o excesso de trabalho, senti a dor de não ser o que exatamente se poderia ser se a vida estivesse no seio de uma página literária ainda em branco. O livro verde, o meu livro verde dos sentimentos, encerra toda a minha nudez, abre minha caixa torácica em retumbantes sons, nada guturais, de libertação do caos habitual.

Escrevem-se ali, quase que automaticamente, sem esforço do agente humano, sonoras vozes de perfeição, beleza, majestade, liberdade, prazer, contentamento. Claro, não se traçam apenas linhas do positivo da vida, mar cor de rosa. Todavia o negativo é ali ordenado, surge da necessidade do escritor, no momento prefigurado, planejado, sistemático.

Poder-se-ia dizer que, para acolá de tudo o que acabo de escrever, a dor maior é quando suas personagens escapam da dimensão escrita, e tomam vida própria. Contorcem-se, vibram, debatem-se e se tornam autônomas. Simplesmente insistem em não virarem personagens títeres. Ávidas por tomarem conta de suas próprias existências, as personagens se rebelam contra seu criador, transformando o teor de toda a obra, ferindo profundamente aquele que, agora passivo, quer apenas criar, transformar, reconstruir.

Com segurança, afirmo que, desde as penumbras de 93-94 (ainda insondáveis), não sentia tamanha dor, daquelas de chorar em voz alta no meio da madrugada, que insiste em amanhecer. Dor íntima, dor única, dor incomunicável – daquelas que não se pode narrar, seja pelo proibido, seja porque a narrativa é simplesmente impossível, incompreensível em si. Dor intransferível, do choque máximo entre o que se dissimula e o que se vive; o que se anseia e o que se tem. Genuinamente dor.

Hoje, após sono profundo, de sonhos conturbados com as personagens todas, acordo em desânimo, sem alma. O que haverá de vir? Inerte, aguardo o desdobrar das páginas opacas do livro verde. Vazio de grandes expectativas, apenas vivo, sem pensar em mais nada. O passo que muda tudo não acontecerá mais num piscar de olhos.

sábado, 9 de abril de 2011

o coelho ruivo de Raquel

Quando era ainda muito jovem, Ricardo foi levado pelos tios para uma curta temporada na Irlanda. Era Primavera, pensava Ricardo, que nunca conseguia muito bem contar o tempo, as horas, as passagens. E sabia-se na Primavera só porque as flores coloriam o chão frio daquele país nortenho, estranho.

Passava grande parte de seus dias observando a natureza, Ricardo. Nunca fora um menino cheio de impulsos por atividades, tampouco era contemplativo. Todavia, fora de sua casa, longe da companhia de seus pais, Ricardo não fazia nada além de olhar os campos, as flores, os coelhos.

Intrigava-se em especial com os coelhos. Percebera, já, ainda muito novinho, que a natureza seguia uma ordem, um padrão, uma norma. As flores nasciam na Primavera, os bebês demoravam nove meses dentro das mamães, os coelhos se reproduziam como coelhos.

Via os coelhos comendo, pulando, fazendo suas necessidades e até sendo caçados por outros animais dos campos, desconhecidos para Ricardo. Transformou-se, naqueles dias irlandeses, em um grande entusiasta da vida animal. Parecia até um daqueles homens do National Geographic, dizia tia Gertha. Não falava em outra coisa, coelhos para cá, coelhos para lá. Coelhos e coelhos...

Até que, menino da cidade, certo dia começou a olhar para os coelhos com alguma ansiedade. Ainda gostava deles, que fique claro, porém não os admirava com o mesmo brilho inocente de duas semanas atrás. Reflexivo, Ricardo começou a imaginar os motivos pelos quais os coelhos simplesmente não se uniam contra aqueles bichos que os atacavam, todos os dias, um a um, um por um. Não fazia sentido continuar a vida, comendo e pulando, se amanhã, ou depois de amanhã, algum intruso peludo atacaria seu irmão, sua mãe, ou você mesmo! Por mais bobo que parecesse, e era mesmo bobo, Ricardo não largava esse pensamento. Tentou até convencer o tio William a treinar uns coelhos na arte da autodefesa, mas era tudo em vão. Tio William parecia um dos coelhos e jamais entraria nessa de ensinar os bichos a se defender.

(...)

Por toda a sua meninice Ricardo mantinha vivo esse raciocínio pueril. Coelhos, autodefesa, rotina, ausência de mudanças. Até que, depois de várias Primaveras, já de volta à sua terra natal, mais velho, responsável, não pensava mais nos coelhos. Claro, nunca esquecera de sua passagem pela Irlanda, na tenra juventude, entretanto simplesmente vivia a vida - atropelado por ela muitas vezes, como dizia sua mãe - sem grandes entusiasmos, sem grandes fixações, sem arroubos, vivia.

Casou-se com Olívia, em uma cerimônia discreta. Convidaram apenas os mais próximos, os mais queridos. Poucos amigos da adolescência, pouquíssimos amigos da faculdade, os bons amigos do trabalho, os melhores da família. Toda aquela discrição e intimidade faziam o evento lindo, aconchegante, sóbrio.

A cerimônia acabou. A recepção ia já avançada. E Ricardo, ébrio de alegria (desde que conhecera Olívia, tornara-se abstêmio), aproveitava cada segundo de todo aquele dia. Nenhuma de suas reflexões sobre o passado lhe invadia a mente. Simplesmente vivia a vida, a melhor parte dela, acreditava, sem atropelos.

A noite de núpcias foi maravilhosa, inesquecível. A lua de Mel, luxuosa, Paris, Londres, Amsterdã. Os presentes, espetaculares, finíssimos. Com exceção de um, simples e, aparentemente, ingênuo. Em um embrulho de cetim muito bem feito, dourado, adornado por fitas de veludo preto, assinado por Raquel, Ricardo encontrou um coelho ruivo.

(...)

Ao longo dos anos, jamais perguntou à Raquel o sentido daquele gesto. Era ela sempre tão ácida e, ao mesmo tempo, tão sensível. Não queria nem sofrer de suas chacotas, tampouco feri-la os sentimentos.

Todavia, recôndito e secreto, em uma noite muito fria de outono, ao lado do single malt de seu tio William, sabe-se lá quantos anos depois - Ricardo sofria dessa dificuldade em contar o tempo -, finalmente sacou a mensagem. Tudo ficara claro para Ricardo. Mas nunca, nunca Ricardo sequer mencionou para uma viva alma sobre as revelações daquela noite fria de outono, na memória do coelho ruivo de Raquel.

domingo, 3 de abril de 2011

sobre o pão e as migalhas

Ricardo: - O pão e as migalhas. Nunca mais vou contar sobre o que sei. Calabouço das ideias sou eu. Joguei as chaves fora. Dou-lhe dois tiros e só.
Laura: - Por que fala assim comigo, Ricardo? Não entendo uma palavra do que diz. Estou ficando preocupada, não me parece mais literatura, na verdade.
Ricardo: - O homem é lobo do homem, e só. Guardo todo o resto em rótulos no meu peito. Não sou mais nu, não mais. Dou-lhe um tiro, é só.
Laura: - Por favor, Ricardo. Fala comigo. Chega de metáforas. Fala claramente. O que está acontecendo? O que devo entender de tudo isso?
Ricardo: - Ordenar o caos é trabalho vão. O inverso do que se diz é o que se sente, todos os dias. Migalhas, migalhas e migalhas... Cadê o pão. A arma está oca, não te sobraram tiros.
Laura: - Ai, Ricardo... Acho que entendi. Finalmente entendi. Me dá essa arma. Eu carrego pra você. Deita, no meu colo.
Ricardo: - De todas as migalhas que ofereci ao mundo, você foi a única que conheceu todo o pão.
Laura: - Eu sei. Agora dorme. Eu amo você!

sábado, 2 de abril de 2011

Os bocados são sempre bons, desta fruta a que chamam vida. Sempre bons de comer, lambuzar e jogar fora, no meio do asfalto negro molhado pela chuva. Há quem pense me conhecer, porque me lê nas entrelinhas do que se faz público, blog, twitter, facebook. Há quem pense que é isso a vida inteira, bocados que se oferece ao morador de rua. Há quem pense já saber de tudo, de antemão, sem sequer contar os inúmeros vãos do que não se diz, não se proclama, só se sente. Ai, a dor que se camufla, a alegria que se finge, o sucesso que se pretende. Ai, o louvor que se clama, a chama que se arde, o mal que se inflige. Ai, a companhia que se namora, a solidão que se tateia, a arte de não ser. Palavras, palavras, palavras! Somente palavras, nada mais. Ficção de estar vivo, sem ser. Linhas que se escrevem automaticamente, com o pavor de não ser lido e nunca mais saber de você. Nem me venha mais, porque não estou aqui. Nem me venha mais, porque não sou. Nem me venha mais, porque te sugo o coração, só para ter de volta o meu.