sábado, 19 de março de 2011

espadachim magiar




As espadas ziguezagueavam no ar, serpentes prontas para o bote definitivo. Em meio às palavras húngaras e aos ódios disfarçados, Ricardo apenas olhava, esperançoso em ser novamente um espadachim. Toda semana visitava aquela academia. Como quem não tivesse coragem de empunhar um sabre, Ricardo acompanhava cada movimento, sabia-os todos de cor, como quem assiste ao mesmo filme centenas de vezes.

Conhecia tudo sobre o esporte, desde os campeões olímpicos, até os lutadores amadores, nos becos perigosos de seu bairro rico. De Zhong e Pozdniakov a Jácobo e Estevão, admirava cada homem que dominasse a arte da espada. Identificava-se ainda mais com os dois últimos, lutadores ilegais, por sua eficiência e a negação constante em aceitar as regras impostas por um sistema autoritário e pedante.

Entretanto, Ricardo não conseguia levantar uma espada. Desde o dia do acidente, Ricardo insistia em olhar, prometera a si mesmo seguir por outros caminhos. Perguntava-se todos os dias, porém, os motivos que o levavam àquela fixação pelas visitas à Academia Magiar. Por que frequentar um ambiente que o levaria inevitavelmente por veredas indesejadas? Por que continuar dialogando com antigos amigos? Por que, enfim, simplesmente não conseguia virar as costas para as espadas, uniformes e gritos de combate?

Parecia-lhe um vício tudo aquilo. Semana após semana, todos os dias, com exceção dos sábados e domingos, Ricardo dialogava com as espadas, sem tocá-las, todavia. Corrigia mentalmente cada movimento equivocado de seus colegas, competia com cada um deles lutas imaginárias, épicas, sem fim. E, a cada semana, a cada dia, ao voltar para casa, indagava-se com peso na consciência sobre o sentido de tudo aquilo. Sabia que não deveria mais voltar ali, sabia que deveria encarar o presente, sua dádiva maior, sem olhar mais para trás. Por que simplesmente não se resignava, Ricardo?

Empacado, como mula ante o mata-burro, Ricardo, mais uma vez, olhava os espadachins da Academia Magiar. Era um dia de muito sol, fazia calor no assoalho liso de concreto, sob o teto de zinco. Suava aos montes, tenso e distraído.

Irritado consigo mesmo, decidiu-se colocar em movimento, em marcha. Tomou nas mãos as chaves de seu antigo armário, ainda seu, apesar da distância dos anos em que treinara ali, antes do acidente. Enferrujada, a fechadura teimou em girar. “Um homem ignorado é uma bala perdida, uma espada sem coração”, Ricardo repetia dentro do peito, para si mesmo, enquanto forçava o cadeado.

Retirou do armário a bainha de couro, ressecada pelo mar do esquecimento, quebradiça e marrom. Ao empunhar novamente sua espada, opaca pelo desuso, não sentiu nada. Pensou que seria aquele um momento vibrante e translúcido, mas tudo o que sentia era o suor de suas mãos e a frieza do cabo metálico de sua arma branca.

terça-feira, 15 de março de 2011

Depois de um dia cheio, com algumas alegrias pedagógicas, e outras tantas indiferenças, vou dormir. Acabo de montar uma avaliação de Geografia, e isso sempre soa tão pragmático, e só.

Gosto mesmo de encarnar personagens agradáveis e, por assim dizer, sedutores. Mas o mar da vida real é escuro, nem sempre verde-mar.

Adrian, Anna Bernnabar, Castle e Beckett... Quem realmente sou? Há ali, nas memórias e atos de ficção; na escrita automática e nas obras de literatura; algo do cerne de mim? O que efetivamente vivo? O que, ou quem, imito? Com quem dialogo em meus monólogos obscuros e tensos? O que mostro do que guardo aqui dentro, dos rótulos do meu peito?

Estou nu? Ou me cubro das centenas de máscaras teatrais, contraditórias redundâncias da aparência? Mostro-me ou sou? Quem?

sábado, 5 de março de 2011

à deriva...






(...) se os teus olhos fossem o mar, navegaria por eles a vida toda. Investigaria os recônditos de tua alma, secreta, pura, afável e minha.

Cruzaria cada camada do oceano infinito destas águas cristalinas e calmas. Remaria por cada baía e enseada, em busca do porto que me faria feliz o resto dos meus dias.

A nado, sim, a nado, sem medo, circundaria a auréola do verde mar de teus olhos. Passaria horas infindáveis pelos rochedos castanhos, no interior do alto mar.

Até que, carregado pela brisa leve de um piscar de olhos, afundaria no torvelinho do buraco negro do teu olhar. E ali, submerso e pacato, curado de todos os males que me agitam o ser, teria olhos somente para ti.

E só poderias enxergar a mim, a mim, a mim... À deriva... Onde o tempo não passaria mais.