domingo, 23 de maio de 2010

Robin Hood e a "Micro-História"




Raramente vou ao cinema. Evito o passeio pelos centros de compra de São Paulo. Não por serem eles símbolos do capitalismo ou da burguesia (se este fosse o caso, não poderia nem caminhar pelo corredor do meu apartamento), mas sinto certa náusea ao circular por entre tanta gente uniformizada, fora da escola. A última vez em que havia prestigiado um filme na telona, o cinema 3D ainda era novidade. E sempre abro exceções assim, com um épico, um clássico, pois o circuito alternativo é muito esnobe para mim.

Em meio aos desfiles de moda, às filas intermináveis e à todo esse introito indesejável, entrei na sala de cinema. Vamos ao filme.

[Os parágrafos a seguir podem conter "cenas do próximo capítulo". Quem está dominado pelo paradigma dos filmes de suspense, não continue a leitura, vou contar o final].

Após assistir ao Making Of do longa metragem, fui ao cinema com a nítida impressão de que Ridley Scott, assim como fizera em Gladiator, daria voz à democracia (ou seria Lucilla a encarnação da liberdade de imprensa? Sempre confundo as metáforas femininas), filmando uma versão medieval da Independência dos Estados Unidos, com todas aquelas falas contrárias ao absolutismo e os ajuntamentos humanos contra a cobrança excessiva de impostos. Todavia, Ridley Scott não é um diretor de grandes temas, mas de grandes personagens, o que fica claro em todos os seus filmes, principalmente em Hannibal.

Deste modo, ao invés de encarnar tão-somente o combate à monarquia absoluta, Russel Crowe, Robin Longstride, herói mítico por excelência, "personagem-tema" é, ao mesmo tempo, inglês, amante, arqueiro, soldado e fora da lei. Encerra em si mesmo, como já o fizera no Império Romano, todo o debate do homem-humanidade, um clichê já bem surrado desde Robson Crusoé. Seria ele um indivíduo ou o cerne de toda a sociedade inglesa de todos os tempos? Não é esta a pergunta a que todos os heróis deveriam responder?

E para que a esfericidade da personagem fosse alcançada, misturando História e ficção (sim, existe diferença entre uma e outra), Ridley Scott embarca no "vício das origens", tão caro aos historiadores e, atualmente, uma verdadeira mania dos cineastas. Quando a própria realidade não faz sentido, é função do cinema buscar sentido aos heróis. Será? Quando a própria realidade parece incognoscível, o cinema quer explicar "como tudo começou". E leva tal missão ao extremo, com auto-referências, como Wolverine, Homem Aranha, Hulk, Batman, Smalville e até a Trilogia Bourne (toda a sequência não passa de uma explicação de si mesma), sem contar a série Lost (extremo da citação própria).

É por este caminho que trilha Robin Hood, ao deixar de lado as vilanias do salteador de Nottingham, para explicar sua origem histórica, seu contexto, o nascimento da lenda. Nosso presente é resultado da morte dos heroísmos. Inexistem grandes homens ou mulheres, substituídos todos por instituições, como "A Política", "O Jornalismo", "A Democracia", "O Voto", "A CIA", ad infinitum. Nesse contexto, não basta simplesmente apresentar cenas de ação onde um homem luta contra exércitos inteiros no seio da floresta, é necessário explicar seu cunho político, seus motivos nobres, seu cenário histórico, seu lugar no mundo. O velho romantismo do cinema não cabe mais nas telas. A crítica de Roger Ebert, do The Chicago Sun-Times, "Pouco a pouco, de título em título, a inocência e a alegria vão sendo drenadas do cinema", é ao meu ver, mais do que intimamente relacionada ao cinema, é um sintoma de nosso próprio mundo, cada vez mais castigado com uma realidade onde a inocência não tem mais lugar.

Antes de fora da lei, Longstride é um inglês, soldado do rei, filho. Tem densidade, este herói, age e reflete sobre si mesmo. Sabe a hora de lutar, a hora de partir, a hora de assumir sua identidade, a hora de ser um falso cavaleiro. Enfim, conhece o seu passado, mistura-o com a História da Inglaterra. Em um primor cinematográfico, Ridley Scott sempre contrapõe muito bem a micro e a macro História. Robin não luta pela Inglaterra, até que tem a nítida visão de que salvar a Inglaterra significa salvar a si mesmo, honrar seu pai, dar vida à frase aprendida na infância: "Rise and rise again until lambs become lions". Aliás, Rodley Scott aprecia bastante roteiros com frases de efeito como esta. Em Gadiator elas apareceram e ficaram famosas, como "Strength and honor" ou "What we do in life echoes in eternity".

Contrariando os eventos bélicos de nosso tempo, os heróis de Sir Scott somente mantém firme sua luta enquanto esta faz algum sentido em suas próprias existências. Maximus lutou por sua vingança, não pela liberdade do Império Romano. Robin lutou por seu passado e sua paixão, não pela sociedade inglesa dos barões locais. E Roger Ferris, do intenso Body of Lies? Enfim, Roger Ferris simplesmente parou de lutar, foi, como se diz, "cuidar da própria vida", justamente naquele Oriente Médio de que ninguém gosta ("Ain't nobody likes the Middle East, buddy. There's nothing here to like"). A força desta decisão é tão seriamente encarada por Scott que a própria CIA tem que conviver com ela:

Ed Hoffman (oferecendo um cargo burocrático ao oficial de operações paramilitares): Besides, what else are you gonna do? Stay here?
Roger Ferris: What if I like de Middle East?
Hoffman (rindo): Ain't nobody likes the Middle East, buddy. There's nothing here to like.
Ferris: Well, maybe that's the problem right there, isn't, Ed?
Hoffman bajula o agente de campo e:
Ferris: Good luck on winning this war, Ed. I hope everyone thinks you did it all by yourself, huh?
Hoffman: You're not safe here. (...) You walk out on me, you know what that means. (...) That means you're giving up on America.
Ferris: Just be careful calling yourself America, huh, Ed. (...)
Hoffman: Nobody's innocent in this shit, Ferris.

Agente e Agenciador olham-se por um tempo, Ferris sai do saguão do hotel (dá as costas para a "América"), um agente disfarçado no bar observa tudo. A cena muda. Ferris, de longe, vislumbra a enfermeira por quem esta apaixonado. Seria esta sua nova história? Não importa. Para a CIA não importa mais, a decisão individual (micro história) é soberana, para Ridley Scott é assim que funciona, ou deveria funcionar.

Sozinho, Ed Hoffman entra em contato com seus agentes da CIA, que tudo veem em imagens de satélite:
Ed Hoffman: What's he doing?
CIA: Nothing. Buying vegetables. What about us, sir? What do you want us to do? Are we staying with him?
Hoffman: No, Buddy's done. He's all by himself.
CIA: Copy that. Cleared off target.

Os satélites, pouco a pouco, são desligados. O herói de Sir Scott está por conta própria. Assim como Robin Hood que, ao lado de sua paixão, ao final do filme, legalmente um fora da lei, perseguido por todo e qualquer cidadão inglês que o queira matar, treina órfãos nas florestas de Sherwood, feliz, dono de sua própria história.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Encarei-o, o fundo de seus olhos, naquela sala de vidro, sob o segredo de anos dormentes. Ninguém, muito menos ele, saberia o que se passou dentro de mim durante o sono de tempos eternos, o meu sono, só meu.

Foram guerras seculares, escatologias múltiplas, redenção e perdição; pensamentos fluidos de quem não se importa mais, justamente por querer tão-somente estar vivo.

Ao vê-lo, ali, debruçado sobre meu corpo, minha memória me traía, não sabia se eu era eu, se o sono havia me transformado em mil pedaços diferentes, em uma realidade fantástica de caleidoscópio. Nem mesmo me lembrava de como o sono começara. Teriam sido explosões, tiros, estupro, múltiplas violações da moral?

O sono, mestre do tempo e da espera, tomara-me de súbito. Como um passageiro da escuridão, onde tudo se vê com olhos do vislumbre. Não há perguntas no sono, não há inquietações no sono, não há conflito no sono. Apenas o mergulho surdo para a clarividência de você mesmo.

O que teria me levado àquele momento único, de tocar os meus olhos em seus olhos? O que deveria eu sentir por aquelas pálpebras, diluídas em sais? Quem era aquele, mãos para trás, acompanhado de dois policiais de baixa patente, como que partido, pueril? Não o reconhecia, não me reconhecia, não nos sabíamos mais.

O sono, em nuvens, em azougue, fez-me supernova. Um voo da fênix. Dilatada dentro de mim. Palavras soltas, síntese pura da indefinição, página em branco.

Começaria ali, naquele quarto de hospital, transparente e branco, uma nova história.