quinta-feira, 28 de julho de 2011

sobre a modernidade e os insetos






Viver num mundo cheio de oportunidade – cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma “compensando a anterior, e preparando o terreno para a mudança para a seguinte” – é uma experiência divertida. Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham “data de validade”, caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura. Como dizem Zbyszko Melosik e Tomasz Szkudlarek em seu interessante estudo de problemas da identidade, viver em meio a chances aparentemente infinitas (ou pelo menos em meio a maior número de chances do que seria razoável experimentar) tem o gosto doce da “liberdade de tornar-se qualquer um”. Porém, essa doçura tem uma cica amarga, porque enquanto o “tornar-se” sugere que nada está acabado e temos tudo pela frente, a condição de “ser alguém”, que o tornar-se deve assegurar, anuncia o apito final do árbitro, indicando o fim do jogo: “Você não está mais livre quando chega ao final; você não é você, mesmo que tenha se tronado alguém”. Estar inacabado, incompleto e subdeterminado é um estado cheio de riscos e ansiedade, mês seu contrário também não traz um prazer pleno, pois fecha antecipadamente o que a liberdade precisa manter aberto.

A consciência de que o jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o inventário das maravilhas que a vida pode oferecer são muito agradáveis e satisfatórios. A suspeita de que nada do que já foi testado e apropriado é duradouro e garantido contra a decadência é, porém, a proverbial mosca na sopa. As perdas equivalem aos ganhos. A vida está fadada a navegar entra os dois, e nenhum marinheiro pode alardear ter encontrado um itinerário seguro e sem riscos.

O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha. “Será que utilizei os meios à minha disposição da melhor maneira possível?” é a pergunta que mais assombra e causa insônia ao consumidor.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzein, Rio de Janeiro: Zahar, 2001.




Certa manhã, depois de despertar de sonhos conturbados, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado de costas sobre a própria couraça, e ao erguer um pouco a cabeça enxergou seu ventre marrom, acentuadamente abaulado, com profundas saliências arqueadas, sobre o qual o cobertor, quase escorregando, estava prestes a cair. Suas muitas pernas, terrivelmente finas em comparação à largura do corpo, agitavam-se desamparadas diante de seus olhos.

(...)

“Ah! Deus Meu”, pensou, “que cansativa profissão fui escolher! Dia após dia viajando! A agitação é muito maior que dentro do escritório, e ainda por cima me obrigam a essa canseira de viajar, a ter de me preocupar com os horários dos trens, com a alimentação ruim e irregular, com relacionamentos provisórios que nunca perduram e nunca me trazem emoção. Para o inferno com isso tudo!”

KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002.

domingo, 24 de julho de 2011

olhos de vidro




Uma ação recente me estilhaçou o coração, a alma.

Aos pedaços, tento seguir a vida, sem a bússola de outrora. Escrevo, não sem paixão, todavia, sem entusiasmo.

Tentando reparar as brechas, as feridas, os abismos. Retratando os passos do caminho escuro.

Sei-me exatamente, entretanto, perdi-me dentro de mim mesmo. Narciso, oculto-me do espelho de vidro, de areia, do pó.

Vidrado, olho o vazio, onde antes havia teus olhos nus e brilhantes. De reticências em reticências, tento desvendar o amanhã, vislumbro, nada mais.

Como em um filme de roteiro adaptado, encaro a vida fora de mim mesmo, em um corredor infinito, decrépito, caduco de esperanças.

Estou sozinho, não há atrás de mim alguém que me siga os passos; ninguém à minha frente, que me guie os caminhos; ninguém ao meu lado, que me oriente os sentidos.

Procuro quem me compartilhe a companhia, a bebida, a carona. Acho-me a mim, e só.

E não é isso tudo? Achar-me a mim, e tão somente a mim? Seria este a trilha da felicidade, em seu máximo?

Não me pergunto, não quero achar respostas. Sei o que sei. Sei-me a mim. Só, o amanhã é pequeno demais.

Dê-me o hoje, o agora, o presente de presente. Amanhã penso no amanhã, e amanhã penso no amanhã, e amanhã...

Apresentando T. S. Campbell




Era uma noite quente, no verão de Nova Jersey. O céu estava limpo, podiam-se ver as estrelas, e a luz da lua iluminava as paredes de tijolos vermelhos da Delegacia. Era mais uma daquelas noites em que o clima contrastava com a roupa usada por T. S. Campbell, em uma de suas primeiras missões como detetive da polícia do Estado de Nova Jersey.

Recém-transferido do Escritório de Cyber-Bullying em Nevada, para a Homicídios de Nova Jersey, Campbell já era conhecido nas ruas por suas roupas inadequadas. Nunca usava terno e gravata (mesmo quando saía para fazer notificações de morte aos parentes de uma vítima), sempre vestia um chapéu Panamá, jaqueta de couro, calças grossas de brim, Converse All Star Chuck Taylor, cano alto, preto (também de couro, diga-se de passagem) e camisetas de manga longa, como se esperasse, a cada noite, ou o frio repentino do deserto, ou encontrar alguns de seus casos antigos, envolvendo centenas de adolescentes alucinados.

Fora sua inadequação indumentária, T. S. Campbell quase não era notado por entre os outros investigadores de polícia em Nova Jersey. Ainda muito novo, relativamente baixo, loiro, cabelos ondulados, misteriosamente transferido de Las Vegas, primeiro ano na Homicídios e companheiro do espetacular Andy McBulge, um irlandês ruivo, 1,88m, 13 anos na Homicídios e com um recorde marcante de prisões e casos fechados, Campbell não era um indivíduo que causasse impressão.

Todavia, pragmático, Campbell não se importava com deslumbramentos e opiniões alheias. Como diriam em Nevada, era apenas um garoto que executava as ordens, realizava seu trabalho, não fazia perguntas. E nunca, nunca olhava para trás. Não se permitia qualquer reflexão que tirasse sua atenção do trabalho. Enquanto não fechasse um caso, não pensava em outra coisa.

Entretanto, esta era uma noite diferente para T. S. Campbell. O assassinato brutal de uma jovem de 17 anos, no pátio da Escola Elementar de Ocean Gate, no Condado de Ocean, Distrito de Ocean Gate, muito perto de sua nova casa (um galpão abandonado, perto do cais, adaptado como moradia, para este solteiro que o usava não como um lar, na definição mais romântica da palavra, porém como dormitório), fazia-o lembrar incessantemente de sua terra natal, de seus casos ainda abertos, nunca resolvidos, na Divisão de Cyber-Bullying do Condado de Clark. Teria sido aquela jovem uma vítima de Bullying? O que diriam as evidências? Qual seria o desfecho dessa história? O que seria desta investigação, ao lado de McBulge, o grande paladino dos casos fechados (sejam lá quais fossem os métodos usados para isso, o irlandês não era exatamente conhecido pela limpeza de suas técnicas, mas pelo brilho de suas estatísticas)?

sexta-feira, 15 de julho de 2011




Esta nota inaugura Zygmunt Bauman como meu novo "guru" filosófico.
Por Adrian Theodor, sexta, 15 de julho de 2011 às 16:39

Tanto social quanto psiquicamente, a modernidade é irremediavelmente autocrítica: um exercício infindável e, no fim, sem perspectivas, de autocancelamento e auto-invalidação. Verdadeiramente moderna não é a presteza em retardar o contentamento, mas a impossibilidade de ficar contente. Toda realização é meramente uma pálida cópia do seu modelo. “Hoje” é meramente uma incipiente premonição de amanhã; ou, antes, seu reflexo inferior e desfigurado. O que é é cancelado de antemão por o que virá. Mas extrai o seu alcance e o seu sentido – seu único sentido – desse cancelamento.

Em outras palavras, a modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo. Ser moderno significa estar em movimento. Não se resolve necessariamente estar em movimento – como não se resolve ser moderno. É-se colocado em movimento ao ser lançado na espécie de mundo dilacerado entre a beleza da visão e a feiúra da realidade – realidade que se enfeitou pela beleza da visão. Nesse mundo, todos os habitantes são nômades, mas nômades que perambulam a fim de se fixar. Além da curva, existe, deve existir, tem de existir uma terra hospitaleira em que se fixar, mas depois de cada curva surgem novas curvas, com novas frustrações e novas esperanças ainda não destroçadas.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da Pós-Modernidade. Tradução de Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Sobre a verdade das mentiras (mais uma vez).


Foto: Moon; 07/11; SP-BR.


Existe um problema fundamental na arte literária. Inúmeros leitores a confundem com cópia do real, mera reprodução de uma sequência de fatos. São leitores que, provavelmente, acreditam em tudo o que se lê em um jornal, por exemplo, que confiam fielmente nesta chamada imparcialidade. Se há "autoria" em um texto jornalístico, quanto mais em um literário! Literatura não tem nenhuma relação com a verdade, sim com a verossimilhança, com o que é, internamente, coerente, nada mais.

São muitos os países chamados de "leitores", por possuírem uma porcentagem elevada de indivíduos que consomem este filão especial da indústria cultural chamado de literatura. Não vou rotular nosso país, incluindo-o ou não neste critério comercial. Todavia me parece ainda haver uma necessidade de amadurecimento cultural no que diz respeito à arte de escrever.

Mais ávido do que o desejo pela leitura, em si, aparece o pela curiosidade acerca do que é verdadeiro, no seio daquelas páginas escritas. Como quem analisa documentos históricos de uma guerra, o leitor questiona o que é real, o que não é; o que é inventado, o que não é. O contexto da obra sobrepuja seu texto.

Age-se como um historiador das mentiras, que empreende uma análise rebuscada de toda a vida do autor, seus romances, seus fracassos, suas batalhas, sua vida familiar. E, no momento da leitura, o texto aparece como suporte da "vida e obra de fulano de tal", não como elemento de análise em si mesmo. Reelabora-se uma biografia do autor a cada novo texto, que é nela inserida apenas como mais um elemento componente de sua existência funcional.

Não há autor sem obra, não há obra sem autor, é verdade. É uma relação essencialmente dialética, ambos se transformam, a cada tessitura, em algo completamente diferente do seu estado inicial. E, talvez por isso mesmo, diminuir uma obra literária ao contexto de seu autor não faz sentido algum. Ela tem um valor intrínseco e, portanto, deve ser analisada no interior de sua própria linguagem, forma e conteúdo.

Toda essa questão se torna ainda mais evidente quando autor e obra mergulham no contexto das "Redes Sociais", espaço virtual próprio da exposição. Ao contrário do que parece, ali não há liberdades e o efêmero toma perspectivas de sedimentação. O alvedrio, apenas aparente, é vigiado, monitorado. E a noção de que tudo passa, grande argumento de quem relaciona a internet com a sensação de falta de lugar, tão própria da modernidade, é, na verdade, transformada em instrumento de rotulação. Quais os limites de uma liberdade compartilhada com tantos "seguidores"? São mesmo passageiras as informações inseridas em um espaço onde todos buscam a definição de quem escreve?

Neste sentido, como poderiam usar as redes sociais os autores literários? Existem aqueles que, na ânsia de compartilhar suas citações, mas com severo temor em serem pessoalmente associados aos seus textos, criam personagens, ou usuários fakes. Assim, toda e qualquer escritura ali executada não seria obra sua, sim de sua personagem. Outros, como eu, simplesmente despejam nas redes sociais o que vai dentro do peito de autor, sempre ativo, inseparável de sua "pessoalidade", todavia não íntimo dela.

Por conseguinte, claro, muitos de meus textos literários, de 140 caracteres ou não, são confundidos com fatos. Há quem me leia nas redes sociais e, automaticamente, julgue saber de tudo o que acontece comigo, dentro e fora desta máscara a quem nomeio corpo. Mais uma vez, chamo-os de historiadores das mentiras, analistas de ilusão, pobres leitores. Precipitados, perdem a profundidade do texto para ganhar o diagnóstico do contexto. Aquele, literário; este, indecifrável a olho nu.