sábado, 10 de setembro de 2011

A Rainha e o Capitão

Todo capitão navega sob uma bandeira. Eu, caveira branca em fundo preto. Corsário, encarno o motim dos amores e desejos inomináveis.

Relegado à pirata, não pela monarquia que me governa, mas por seus opositores, não navego à deriva, salvarei a rainha no seio de seu castelo.

Salva, não exercerá poder sobre aquele reino decrépito. Governará a nação de nós dois. E, sob seu cetro, nunca mais os bárbaros passarão!

Minha rainha nunca me transformará em rei. Serei sempre seu capitão em armadura de cetim, pronto para as batalhas de sua casa de bonecas.

Não há caminho de volta. Nada mais importa. Eu só preciso de você. Entre em meu navio, sou seu capitão amotinado. Você é o meu amor.

(...)

Elevem vossos grilhões, oh inimigos do reino! Elevem vossos grilhões e esperem pela força máxima de minha paixão! Eis que me levanto…

…e recrio da escuridão todas as coisas. Capitão dos desejos e das sombras é o meu nome! E você? Como se chama, oh escravo das masmorras?

A abundância de vosso rigor fortalece as chamas de meu peito líquido. Minha força é infinita, vosso poder inamovível. Preparai-vos!

Preparai-vos para a tempestade que trago à vossas águas! Preparai-vos para o fim de toda a doçura! Preparai-vos para as dores do combate!

Não há treinamento para a dor que agora sinto. Nem palavras que descrevam o ato final desta redenção. É chegada, é chegada a hora do juízo.

Estais prontos para perder tudo o que ama? Tens coragem de empreender a batalha secular que preparei só para vós? Eis que sereis derrotados…

…no interior de vossa casa das prisões eternas. Manifestai-vos, escravo das masmorras! Tão somente para capitular ante o fio de minha espada.

(...)

E seguiam, o Capitão e a Rainha, trocando mensagens proibidas através de pombos correio secretos. Letras de morte, amor, juras eternas.

A distância cruel do cativeiro os atormentava o ser. Confundia a percepção de seus sentimentos, mas nunca sua certeza! Era amor, era amor.

A sós, no segredo cativo, entoavam hinos em nome de sua adoração mútua, interminável, deles! Quais os deuses que contemplavam agora?

Eram aqueles de seus pais? Eram aqueles dos mitos do passado? Eram deuses engarrafados? Ou eram eles mesmos? Teocêntricos de si mesmos!

Encastelada e velejando, sonhavam com o dia do encontro, do pra sempre, do pra nunca mais, do pra mais ninguém. Olhavam-se, paredes e velas.

A distância apenas os encorajava a arriscar tudo. Paredes e velas. Alçapões e mastros. Cabelos e tapa olhos. Ela e ele, ninguém mais!

domingo, 4 de setembro de 2011

amor orgânico




Não sentei sobre este teclado até que minha vontade de ir ao banheiro fosse incontrolável. Posso dizer, com segurança, que minha bexiga vai explodir em alguns minutos; cuidei, nas últimas horas, para que ela estivesse exatamente assim, tensa e pronta para despejar seu conteúdo na primeira oportunidade. Penso não se fazer necessário explicar o meu sentido de urgência ao escrever este texto.

Agora, pesado, posso refletir sobre o que significa o amor orgânico. Sobre o que significa amar tanto um sujeito, que seu corpo clama por ele. Não é disso que tratam os filmes de Hollywood, sempre tão limpos e higiênicos, de amores que se consertam na tessitura própria do enredo. Os amores de cinema são plásticos, não orgânicos. São bonitos, mesmo quando feios. Reformados, recriados, amenos.

Talvez seja certo moralismo às avessas de minha parte, mas o amor orgânico, este que sinto hoje, é carnal e vivo. Vem aqui de dentro da bexiga, dói nos intestinos, sente-se nos rins. Claro, é sentimento, toca o ~coração~, este mito de sede das sensações, quartel general dos sentimentos todos, organizados e confusos. Entretanto, é governado pelas entranhas do corpo nu, da pele nua, da razão em carne viva, aberta e suja.

Áspero, o amor orgânico não fica à deriva. Exige ação contínua. É exatamente o inverso de estar no meio do oceano, esperando os acontecimentos que se desdobram em sua volta, morno. É precisamente o que se sente ao experimentar o anseio de se encontrar um banheiro quando se está de bexiga cheia. É justamente o que se quer, na hora em que se quer, sem saber esperar ordens, julgamentos morais ou regras de etiqueta. Mais uma vez, urgente, ponto de exclamação, agora!

Liga-se diretamente às outras necessidade que costumamos chamar de vitais. O amor orgânico é beber, comer, cheirar, tocar, defecar, urinar, dormir, amar, adorar. Toma-nos em nossa essência, em nosso vigor, em nossa intimidade, em nossas vicissitudes mais primordiais e brutas. É como o puxar de cabelos do homem das cavernas, quando este encontrava sua parceria reprodutiva. Como querer consumir o corpo de quem se ama do mesmo modo que se mastiga cada fibra do salmão, no prato japonês. É querer salivar com a saliva do outro, morder com os dentes do outro, roer as unhas da ansiedade do outro, encher de ar os pulmões do outro, livrar as mãos do outro de todos os empecilhos que corroem sua felicidade, libertar-se a si mesmo através da libertação de quem se ama orgânicamente.

Ininteligível, o amor orgânico não pode ser decifrado por quem não o sente em sua plenitude. Se você não participa de uma companhia orgânica, jamais vai entender o que significa sentir dores agudas em um estômago que deseja dialogar com outro estômago, externo, amado, necessário. Nunca será capaz de comparar o tom de pele de seu amor com um queijo branco dentro de um pão de padaria. E, para além das metáforas e comparações estéticas, jamais vai querer mastigar a barriga de seu amor exatamente do mesmo modo que se mastiga o tal queijo minas, fresco e branco. Tampouco vai querer roubá-lo, em um beijo de língua, de dentro da boca do seu amor, somente para terminar de mastigá-lo, pleno de sabor orgânico.

Amálgama, o amor orgânico transforma dois corpos em um só. Todas as emoções, sensações, sensibilidade, raciocínios, necessidades, saudades, são parte de uma mesma identidade corporal. Os amantes orgânicos se lambem como gato ao leite, pois, na verdade, são parte da mesma entidade física. Lambem-se um ao outro, pois se lambem a si mesmos. Amam-se em todas as suas diferenças, justamente por encontrarem em si as maiores semelhanças que são possíveis em duas personalidades distintas. Não sentem falta da presença um do outro, mas necessitam orgânicamente da junção corporal, um no outro. Transformam-se em um só corpo, não mais se permitem viver separados, já não podem se dar ao luxo de voltar atrás. Pertencem-se, ou morrem. E eles querem viver!