domingo, 27 de novembro de 2011

"O Sol se põe em São Paulo" - Bernardo Carvalho






Terminei a leitura deste texto ontem, à noite, deturpando a perspectiva de compartilhamento da maioria dos bons leitores, grifando vários trechos considerados importantes. E não os grifei com lápis, instrumento efêmero; sim com aquelas canetas marca texto, de cor rosa, definitivo, mesmo que tendendo a desbotar com o tempo.

O fiz como uma declaração eterna de amor. Não apenas à cidade de São Paulo, que pensei ser o tema principal do texto em questão (quando o comecei a ler), como sugeria a capa, o primeiro capítulo. Todavia uma declaração de amor à todas as esquinas pelas quais passei neste ano de 2011, certamente o mais revelador de minha vida, já não tão curta como gostaria. Ainda, uma declaração de amor ao meu débil papel de escritor, tão intenso quanto pueril, mero construtor de máscaras e personagens planas.

O romance realmente não é muito bom, como vários meios de comunicação e críticos literários já anunciaram. Desconheço a obra completa do autor, porém, em termos literários, o texto deve muito. Apresenta uma introdução enorme, aflorando em romance apenas no penúltimo capítulo. Pareceu-me um grande roteiro de filme. Com riscos de grandes diálogos com o que é obvio na linguagem de cinema, ou seja: sujeito A quer conseguir seu objetivo B, mas aparece um elemento C que atrapalha tudo. Típica narrativa do suspense narrativo. Ou, quem sabe, mero deslumbramento com a cultura japonesa. Apresentada ali como tensão, entre as censuras familiares de uma cultura estática, imutável; e as possibilidades frustradas de transformação dos imigrantes nipônicos no Brasil. O próprio título do texto nos oferece tal sugestão. O Brasil é o lugar onde o sol se põe, frustrante, fraturado, lugar da morte em vida, sem metáforas.

E talvez esse seja justamente o ponto forte do livro. A relação entre os diferentes países e sua potência de gerar fraturas psicológicas marcantes e definitivas. O oriente e suas sombras, o ocidente e sua lucidez. Ambos revelam verdades, ou por acentuarem a essência dos personagens, ou por destacarem suas máscaras. Mais ou menos como disse Michyio: "No fundo, todas as máscaras confirmam quem você é. Pois é você que as usa. … o bom ator se revela nas máscaras. … o bom ator já não precisa delas, pois as incorporou". O que me fez pensar em um pequeno texto, na madrugada de ontem, que compartilho com vocês a seguir.




Quantas personagens vivemos numa só vida? Quando atuamos e quando vivemos efetivamente? Mas não é a atuação parte de nós? O que é viver senão atuar todos os dias, aqueles papeis escritos por nós mesmos ou entregues a nós, como roteiro adaptado? Quem somos, afinal? Autores autobiográficos ou personagens aleatórios, títeres insignificantes de certo autor que vaga por aí? São nossas falas diálogos criados a partir de nosso ego ou simples discursos engendrados por um roteirista mais esperto que nós?

Há quem tão somente viva, passo a passo, sem se perguntar sobre o próximo. Há quem, contudo, não saiba viver sem se questionar sobre cada passo a seguir. E nós? Quem somos nós? Qual operação usamos para seguir o caminho? Não somos nós apenas viciados em adrenalina? Ou essa adrenalina é parte de algo maior que desejamos ardentemente sentir? Finalmente, o que desejamos tanto sentir ao passar por essa vereda que chamamos de "nossa vida"? Não seria a adrenalina uma maneira de fugir do medo de passar pela existência sem sentir absolutamente nada? Temos medo de caminhar por aqui e não passarmos de "apenas mais um", medíocres, descartáveis e estéreis. Chega um momento na vida em que viver em timeline não parece mais o bastante. A "vida em timeline" é linda, plena em possibilidades, transparente e líquida, entretanto, insuficiente, vida de "mais um". Adicionamos, seguimos, aumentamos nossos círculos, mas clamamos por algo maior que nos dilate a pupila, acelere nosso coração e encha nossos pulmões. Algo... Ou alguém! Alguém que não torne nossa timeline monótona, sim faça a vida vibrar em ciclos muito menores, agitando-a como nunca se agitara antes! Fazendo nosso corpo transbordar com sensações e sentimentos antes só imaginados, pressentidos, porém completamente desconhecidos no tecido do real.

E, assim, fora da timeline, sugando cada gota que transborda de nossos corpos suados por adrenalina, acreditamos na posse orgânica de nosso fôlego. Não nos perguntamos mais se a vida é nossa ou não. Se o destino é desenhado por nós mesmos ou predeterminado. Se o livre arbítrio é real ou se nossos desejos são gerenciados pelos progenitores de nossa presença no mundo. Não nos perguntamos mais, porque acreditamos. Acreditamos, porque vivemos. E vivemos, sim, a vida que escolhemos. De novo, existem aqueles que acreditam numa existência automática, baseada em sabe-se lá quais princípios organizadores, externos à sua própria vontade. E existem aqueles que, como nós, enfrentam a oportunidade única de olhar a própria encarnação como uma possibilidade de escolha.

Claro, olhar a vida deste modo pode gerar movimento ou paralisia. E ambos, depois que se aprende a viver com o corpo carregado de adrenalina e sob o efeito de não ser "mais um", exigem coragem. Postos em movimento ou paralisados, após conhecer a plenitude de decidir o próprio destino, nunca mais somos os mesmos. Seja escolhendo a segurança e o conforto de uma vida imóvel, comandada por elementos externos a nós; seja encarando a glória e o brilho da vida que transborda todos os dias, estamos transformados, completamente novos na potência de estabelecer em nós mesmos a novidade de vida.

Enfim, quem escolhemos ser? Quais papeis decidimos interpretar? Seremos bandidos? Mocinhos? Ou a síntese da ruptura de todos esses rótulos? Eu fiz a minha escolha. Vida vadia, o que mais?

segunda-feira, 14 de novembro de 2011






Este é apenas um trecho de todo um capítulo que consegui tirar do campo das ideias desde ontem. Espero que este tempo de pausa hoje vivido por mim seja produtivo para o "livro verde".




Olhava para todos os lados daquele cubículo empoeirado, alheio e familiar. Sob aquele teto bege, maculado pelo tempo, sentia-se pequeno, frágil. Ocultado de si mesmo, tentava visualizar o que lhe seria o futuro, agora fraturado por suas próprias masmorras, auto-impostas. Regia sua vida como um condutor sem partitura, e se perdia por entre tantas notas em fuga, Si Menor, II Ato, sem piedade ou arroubos de misericórdia. Sua cabeça doía em ressaca. Sua memória parecia conservada em carvalho e a cada gole se transformava. Destilando-se, de grão em grão, nunca era a mesma, traidora de sua vontade. Lembrava-se do que bem entendia, e não obedecia ao controle do maestro. Inexistia qualquer mágica naquela maneira de evocar o passado, tudo era bruto, seco, sem chances de repressão; reminiscências em carne viva, em brasa, dor. Tentava controlar o torvelinho no fundo de um copo, dois, três, perdia a conta. E só alcançava confusão maior, notas dissonantes de uma sinfonia inacabada.

Ricardo, saudoso de sua bastilha e, ao mesmo tempo, aliviado por aquele abandono, tão repentino quanto esperado, vislumbrava os monumentos do tempo, personagem inexorável de todas as vidas de tantos universos, criados por ele ou simplesmente aleatórios. Começava a refletir sobre as obras da ocasião e percebeu, como que em milésimos de segundo de sobriedade em meio à ressaca da ressaca, que estava procurando a culpa de sua situação em algum elemento externo. O trabalho, as rotinas, os poucos amigos, os inimigos todos, os perseguidores, os "stalkers", os desocupados de vida besta, o tempo, o Destino, o coelho de Alice, setembro. Tentava ali, com sono, pânico e amargura, culpar o distante.

E foram estes segundos efêmeros de sanidade que transformaram Ricardo, mais uma vez. Todavia, comentaria ela, ouvindo o relato deste momento único dos lábios macios dele, se não fossem as doses todas de Irlanda em seu estômago revirado, não saberia valorizar os segundos sãos. E era verdade, a máxima verdade, como de costume.