segunda-feira, 22 de março de 2010

Sempre fui assertivo sobre o prazer de meu trabalho. Ao contrário das críticas sociais mais rasteiras, ser um advogado criminal, "soltando bandidos", é um deleite. Muito menos pelos crápulas milionários, soltos nas ruas ao passar por meus critérios interpretativos; muito mais pelo prazer retórico das reuniões, dos diálogos, dos acordos, das leituras, enfim, dos tribunais.

Entretanto, hoje, sentia-me inquieto. Este interlocutor, meu mais novo cliente, pago pela Polícia Federal, investigador criminal de alto escalão, encarava o silêncio com maestria. Sua atitude se completava com minha total inexperiência em casos passionais. Ainda mais uma tentativa de homicídio como esta, dois tiros no peito, à queima roupa, vítima em coma.

Encontramo-nos já por duas vezes. Sempre com procedimentos idênticos: cumprimento-o, apresento meus argumentos em favor de sua defesa, ouço seus impropérios (sempre educados, todavia impropérios) exigindo auto-representação no tribunal, passamos por momentos de silêncio, retiro-me da instituição prisional. Foram já semanas desde o ocorrido, e não consegui montar um caso coerente, que pudesse ser apresentado na corte. Juntei provas forênsicas, questionei-as todas, montei um dossiê com amigos e familiares do casal, interpretei-as todas (ao meu modo, claro, como o faz qualquer bom advogado), porém, sem a versão do autor do ato criminoso, marido de Anna, fico no escuro, como quem quer sair.

Hoje faço a ele minha terceira visita como advogado de defesa. Não repetirei os procedimentos anteriores, não se usa o mesmo método inócuo três vezes. Não me adianta mais apresentá-lo às evidências físicas de seu crime, ele estava lá. Não me adianta mais demonstrar o risco da auto-representação em casos passionais, ele sabe muito bem que não tem condições de se defender. Muito menos me adianta descrever a situação de todo o sistema prisional brasileiro, ele é parte dele, conhece-o por demais. Vou apelar à sua vaidade, como humano, federal, homem. Vou apresentá-lo à sua própria depressão. Vou simular, como se faz em um tribunal, o espetáculo de sua própria miséria. Descrever e exagerar seus sentimentos mais íntimos. Destruí-lo com supostas evidências que o descrevem como um maníaco depressivo medroso, covarde, assassino. Vou retirar de sua cabeça qualquer possibilidade de alegação de insanidade temporária. Por fim, vou desnorteá-lo, aturdi-lo, esmagá-lo, empurrá-lo contra uma parede intransponível dos maiores terrores e dos mais baixos sentimentos de humilhação e desprezo. E, assim que ele começar sua auto-comiseração, entra em cena minha defesa. Encarnarei, em apenas alguns minutos, ao mesmo tempo, todo o clichê do bom policial versus mau policial. Ataco, defendo. E, assim, no seio de sua própria linguagem, terei-o em minhas mãos.

Um comentário:

Lucas Lucas disse...

Pq não sonhas? Transforme em um livro agora. Quem sabe não vira uma série, han? Falando em séries, acompanhe 'Flashfoward", estou gostando bastante.
Sempre acompanhando aqui, nem sempre comentando, mas sempre acompanhando mestre. E aguardo o próximo capítulo da novela.