sábado, 9 de abril de 2011

o coelho ruivo de Raquel

Quando era ainda muito jovem, Ricardo foi levado pelos tios para uma curta temporada na Irlanda. Era Primavera, pensava Ricardo, que nunca conseguia muito bem contar o tempo, as horas, as passagens. E sabia-se na Primavera só porque as flores coloriam o chão frio daquele país nortenho, estranho.

Passava grande parte de seus dias observando a natureza, Ricardo. Nunca fora um menino cheio de impulsos por atividades, tampouco era contemplativo. Todavia, fora de sua casa, longe da companhia de seus pais, Ricardo não fazia nada além de olhar os campos, as flores, os coelhos.

Intrigava-se em especial com os coelhos. Percebera, já, ainda muito novinho, que a natureza seguia uma ordem, um padrão, uma norma. As flores nasciam na Primavera, os bebês demoravam nove meses dentro das mamães, os coelhos se reproduziam como coelhos.

Via os coelhos comendo, pulando, fazendo suas necessidades e até sendo caçados por outros animais dos campos, desconhecidos para Ricardo. Transformou-se, naqueles dias irlandeses, em um grande entusiasta da vida animal. Parecia até um daqueles homens do National Geographic, dizia tia Gertha. Não falava em outra coisa, coelhos para cá, coelhos para lá. Coelhos e coelhos...

Até que, menino da cidade, certo dia começou a olhar para os coelhos com alguma ansiedade. Ainda gostava deles, que fique claro, porém não os admirava com o mesmo brilho inocente de duas semanas atrás. Reflexivo, Ricardo começou a imaginar os motivos pelos quais os coelhos simplesmente não se uniam contra aqueles bichos que os atacavam, todos os dias, um a um, um por um. Não fazia sentido continuar a vida, comendo e pulando, se amanhã, ou depois de amanhã, algum intruso peludo atacaria seu irmão, sua mãe, ou você mesmo! Por mais bobo que parecesse, e era mesmo bobo, Ricardo não largava esse pensamento. Tentou até convencer o tio William a treinar uns coelhos na arte da autodefesa, mas era tudo em vão. Tio William parecia um dos coelhos e jamais entraria nessa de ensinar os bichos a se defender.

(...)

Por toda a sua meninice Ricardo mantinha vivo esse raciocínio pueril. Coelhos, autodefesa, rotina, ausência de mudanças. Até que, depois de várias Primaveras, já de volta à sua terra natal, mais velho, responsável, não pensava mais nos coelhos. Claro, nunca esquecera de sua passagem pela Irlanda, na tenra juventude, entretanto simplesmente vivia a vida - atropelado por ela muitas vezes, como dizia sua mãe - sem grandes entusiasmos, sem grandes fixações, sem arroubos, vivia.

Casou-se com Olívia, em uma cerimônia discreta. Convidaram apenas os mais próximos, os mais queridos. Poucos amigos da adolescência, pouquíssimos amigos da faculdade, os bons amigos do trabalho, os melhores da família. Toda aquela discrição e intimidade faziam o evento lindo, aconchegante, sóbrio.

A cerimônia acabou. A recepção ia já avançada. E Ricardo, ébrio de alegria (desde que conhecera Olívia, tornara-se abstêmio), aproveitava cada segundo de todo aquele dia. Nenhuma de suas reflexões sobre o passado lhe invadia a mente. Simplesmente vivia a vida, a melhor parte dela, acreditava, sem atropelos.

A noite de núpcias foi maravilhosa, inesquecível. A lua de Mel, luxuosa, Paris, Londres, Amsterdã. Os presentes, espetaculares, finíssimos. Com exceção de um, simples e, aparentemente, ingênuo. Em um embrulho de cetim muito bem feito, dourado, adornado por fitas de veludo preto, assinado por Raquel, Ricardo encontrou um coelho ruivo.

(...)

Ao longo dos anos, jamais perguntou à Raquel o sentido daquele gesto. Era ela sempre tão ácida e, ao mesmo tempo, tão sensível. Não queria nem sofrer de suas chacotas, tampouco feri-la os sentimentos.

Todavia, recôndito e secreto, em uma noite muito fria de outono, ao lado do single malt de seu tio William, sabe-se lá quantos anos depois - Ricardo sofria dessa dificuldade em contar o tempo -, finalmente sacou a mensagem. Tudo ficara claro para Ricardo. Mas nunca, nunca Ricardo sequer mencionou para uma viva alma sobre as revelações daquela noite fria de outono, na memória do coelho ruivo de Raquel.

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